June 5, 2018

NL#3 – Fahrenheit 451: uma adaptação com vestígios de saliva

Foi no dia 6 de janeiro de 2016 que, pela primeira vez na vida, vi o “Fahrenheit 451”. Era uma sessão da tarde da Cinemateca, e não estava preparada para que o filme fosse tão bom. A versão, de 1966 e de Truffaut, era tão semelhante ao livro que até metia nojo.

Foi, então, com entusiasmo que recebi a notícia da adaptação da HBO de tamanho clássico, com o Michael B. Jordan (o mal-amado “Killmonger” de Wakanda) a fazer de Montag. Prometia ser um filme mais inclusivo (contrastando com o Montag branco e loiro do filme de 1966, mas não o do livro) e que abordaria o tema das tecnologias e redes sociais, mostrando um ambiente mais futurista. O trailer estava espetacular, logo, o filme seria espetacular.

(Spoilers Alert) O filme está de facto espetacular. Até ao minuto 62. Porquê até ao minuto 62? Bem, para quem leu o livro, Clarisse tem cerca de 14 anos. E é nesse momento, em que Montag e Clarisse se beijam.

Ficou o caldo estragado. Desde toda a construção do ambiente futurista, passando pela abordagem de problemas de hoje como as redes sociais, a noção de privacidade, entre outras; até a própria construção das personagens, todos estes elementos se interligavam e conferiam não só verosimilhança à história, como a sensação de épico. Tudo isto, para ser estragado pela necessidade americana de pirosice.

A partir daí, foi tudo por água abaixo. Claro que uma montanha russa tem que ter momentos de subida e de descida, só assim é que é entusiasmante. Mas se a primeira parte do filme é a subida ansiosa, sabendo que vem ai uns quantos loops alucinantes e que o filme será espetacular no seu todo, a segunda parte é, de facto, o conjunto de descidas estonteantes que tínhamos em mente. Só que a viagem fica completamente estragada porque todos os casais se estão a comer, na carruagem onde estamos.

Não há assim tanta saliva no filme. Há apenas um beijinho. Mas quem tiver lido o livro, sabe que esse beijinho é suficiente para estragar todo o ambiente. Até porque é a partir desse beijinho que a narrativa se perde, acrescentando elementos novos e não sabendo completar os antigos. No entanto, é de louvar a caracterização psicológica das personagens, nomeadamente a profundidade do Captain Beatty, interpretado por Michael Shannon.

 

Com a hype toda que existia à volta do filme, a HBO não o soube desenvolver. Não diria para verem apenas a primeira parte, pois existem boas (e refrescantes) ideias na segunda parte. Mas preparem-se mentalmente. De qualquer das maneiras, fica o repto a lerem o livro e a verem o filme de 1966. Nem que seja só para depois dizer mal destas partes pirosas.

Autoria: Carolina Sousa